29.11.11

Still his guitar gently weeps

Passavam poucos minutos da meia-noite de ontem quando o André Grassi, colega de faculdade, turma de formandos e peripécias, incluindo um programa de rádio, uma animação em super-8 e uma pretensa banda inspirada nos Beatles, publicava em meu Facebook e no de uma porção de amigos nossos uma foto de George Harrison. A imagem, que para alguns já dizia tudo, foi complementada pela legenda: “Já faz 10 anos...”.

Porque ontem, 29 de novembro de 2011, completou dez anos a morte de George, o “beatle tímido”. Apesar da predominante dicotomia Lennon/McCartney nos “Fab Four”, o guitarra solo da banda fez por merecer também um lugar entre os gênios da música. Quando fui apresentado à discografia dos Beatles por um colega do então Segundo Grau, descobri, simultaneamente, “All things must pass”, o primeiro álbum triplo da história do rock, resultado do represamento da genialidade de George Harrison durante os anos como beatle. Dessa maneira, conheci minha banda favorita ciente desse talento mal aproveitado de seu guitarrista, oculto em sua timidez à sombra dos mais prolíficos e falantes John Lennon e Paul McCartney.

Em outras palavras, aprendi a gostar das canções de todos eles em pé de igualdade – apesar de, em nossa pretensa banda, eu ter me tornado Paul McCartney, uma vez que George sempre foi o beatle favorito do Leandro Steiw. Assim, algumas composições de George ganharam valor especial. A começar pela genial “While my guitar gently weeps”, do “White Album”, que tocamos e cantamos entrando de surpresa na casa do Leandro no dia de seu aniversário. Tenho ainda um carinho particular por “Revolver”, álbum dos Beatles de 1966, por ter indicado que uma importantíssima transição terminava, deixando a beatlemania no passado, e por ser o único com três músicas de George (“Taxman”, “Love you too” e “I want to tell you”). Talvez por isso ele seja tão bom.

Costumo dizer que os Beatles estavam gravando “Within you without you”, que George compôs para “Sgt. Peppers”, no momento em que eu nasci – eles entraram no estúdio para o primeiro take na véspera do meu nascimento. E o que falar de “Here comes the sun” (a melodia favorita de George) e “Something”? O último álbum dos Beatles foi justo aquele em que as duas músicas que ficaram para a eternidade foram compostas por Harrison, provando que o terceiro gênio da banda não havia sido devidamente reconhecido. Foram apenas 26 as músicas de George nos tempos de Beatles. Menos era mais.

Não conheço até hoje todo o trabalho de George pós-Beatles. Mas o álbum triplo valeu uma pesquisa musical para nosso programa na Rádio da Ufrgs, e canções como “Isn’t it a pity”, que termina com um refrão interminável, feito um mantra de tristeza, ainda me emocionam. Tanto que chorei quando a assisti pela primeira vez, cantada por Billy Preston, no “Concert for George”. O mesmo já aconteceu ao prestar atenção na letra de “Rising sun”, do álbum póstumo, “Brainwashed”:

And in the rising sun you can feel your life begin
Universe at play inside you DNA
You’re a billion years old today
Oh the rising sun and the place it’s coming from
Is inside of you, now your payment’s overdue
Oh the rising sun.

O que me tranquilizou quando soube da morte de George foi saber que, desde o diagnóstico de câncer, ele estava em paz, satisfeito com a vida que havia levado. Apesar de sua conhecida espiritualidade estar exacerbada no último disco, George parece ter trabalhado nele como se depois dele pudesse haver outros. O “beatle tímido”, calado nas entrevistas e com olhar sério e até parecendo amargo às vezes, como na discussão que teve com McCartney frente às câmeras no vídeo “Let it be”, era talvez o mais realista e centrado dos Beatles, discreto, fleumático como inglês que era, e dono de um senso de humor só dele. Voltava em paz para o universo, do qual sempre fizera parte inseparável, e deixara em troca sua guitarra, que continuará para sempre tocando gentilmente.

24.9.10

Onze minutos definitivos



Eu não havia ainda assistido ao filme "11 de Setembro", de 2002, no qual onze cineastas de diversas nacionalidades reúnem, num longa-metragem, onze filmes de onze minutos cada, retratando visões diferentes sobre os atentados sofridos em Nova York um ano antes. A pequena repercussão de meu texto anterior, no entanto, me fez chegar ao trecho filmado pelo britânico Ken Loach, no qual um chileno, em uma carta aos familiares das vítimas nova-iorquinas, diz o que o dia 11 de setembro representa para ele.

Digo pequena repercussão porque foi mesmo pequena. A contagem de acessos a meu blog teve certo aumento nos últimos dez dias, mas tive apenas um comentário registrado no site e outro, também positivo, que recebi por e-mail. Posso debitar um pouco disso à crônica e lamentável falta de interesse, mas decerto faltou coragem para uns e outros – tanto para concordar quanto para discordar de mim.

E, quanto ao filme de Ken Loach: onze minutos definitivos. Lágrimas brotaram-me. O quadro foi muito pior do que eu havia apresentado no texto anterior. As ameaças de invasão que eu imaginava eram, na realidade, bombardeios ao palácio do governo chileno, do qual Allende se recusou a fugir. Torturas. Assassinatos. Treinamento de militares pela CIA. Bloqueio econômico. Nesse 11 de setembro, o de 1973, eu tinha apenas 6 anos e, mesmo que tivesse discernimento, os meios de comunicação brasileiros ainda permaneceriam censurados pelos governos militares até que eu tivesse 18.

Quanto mais eu aprendo sobre a América Latina, mais certeza tenho de que a queda das Torres Gêmeas foi um espetáculo lindo, o mais próximo que a realidade já chegou de um filme de Roland Emmerich. E de que aquela casa caiada de branco, à avenida Pensilvânia, 1600, em Washington, D.C., nada mais é que o sepulcro da liberdade mundial.

11.9.10

A fábrica da liberdade e os onzes de setembro


Mais um ano e o 11 de setembro – pelo menos o 11 de setembro que os jornais ainda recordam – completa uma década. Para variar, a data foi cercada de polêmicas, envolvendo a queima de Alcorões e a proibição de instalação de uma mesquita próximo ao local onde ficava o World Trade Center. Mas afinal, os Estados Unidos não são a terra, a fábrica da liberdade?

Ah, a liberdade. As discussões políticas e as relações com pessoas ditas “libertárias” e “democráticas” trouxeram-me desencanto com essa palavra. A liberdade cada vez mais me parece um bem finito, como a quantidade de energia, a água e o oxigênio, e que não pode ser fabricado. Para que alguém a obtenha além de certo limite, de outro ela precisa ser tirada. Assim, é permitido ser muçulmano em Nova York; mas rezar para a Meca perto do Ponto Zero, não. É-se livre para entrar nos Estados Unidos; mas quem levar xampu na bolsa corre o sério risco de ser confundido com um terrorista da Al-Qaeda de carteirinha.

Então, repito, os Estados Unidos são a terra da liberdade? São a terra do medo, do dinheiro, do desperdício, mas são também a terra dos donos da liberdade, daqueles que estipulam quem tem a liberdade de fazer o quê. Inclusive a liberdade de contar a história. Tanto que 11 de setembro tornou-se, para as Torres Gêmeas, o que as Havaianas passaram a ser para o chinelo de dedo. Poucos lembram o 11 de setembro de 1973, data do golpe de estado, no Chile, comandado por Augusto Pinochet, que culminou com a morte do presidente socialista Salvador Allende e o início de dezessete anos de ditadura. Por que ninguém mais lembra esse 11 de setembro? Será porque o golpe de estado foi ordenado pelo governo dos Estados Unidos, sob pena de invasão norte-americana? Ainda estou na dúvida. O então presidente Gerald Ford, na ocasião, afirmou que os fatos ocorridos no Chile foram “no melhor dos interesses do povo chileno e, certamente, nos nossos melhores interesses”. Obrigado, senhor presidente, por ter nos dado a liberdade de sabê-lo.

Por isso o estardalhaço do 11 de setembro (agora falo do 11 de setembro verdadeiro, aquele ocorrido em Nova York) nunca me desceu direito. Não fiquei muito tempo nas linhas dos que defendiam a idéia de um atentado perpretado pelo próprio governo norte-americano, mas não tenho dúvidas de que a derrubada do World Trade Center era tudo de que George W. Bush precisava para levar adiante seus planos de governo, incluindo um kit de reeleição totalmente grátis. Quem assistiu ao filme “Fahrenheit 11 de Setembro”, de Michael Moore, viu a cena em que Bush recebeu de um assessor a notícia dos atentados; tal era a naturalidade do presidente que parecia ter ouvido do funcionário: “Senhor, a operação deu certo”.

E não deixo de lamentar as vidas humanas perdidas, mas sempre achei o atentado às Torres Gêmeas, em termos de ousadia, organização e precisão, um ato de gênio. É muito mais difícil acertar um jato comercial contra um edifício específico do que jogar uma bomba atômica sobre uma cidade japonesa. E menos covarde, pois os integrantes da Al-Qaeda que ocuparam os aviões usados nos atentados não puderam retornar à base.

Volto, então, à liberdade de se contar a história. Os muçulmanos que planejaram e realizaram os ataques de 11 de setembro de 2001, liderados por Osama Bin Laden, foram considerados terroristas e caçados mundo afora, justificando a invasão do Afeganistão e do Iraque. Por que, então, as bombas jogadas sobre Hiroshima e Nagasaki em 1945, por ordem do presidente dos EUA Harry Truman, não são consideradas um genocídio, que dirá um atentado? Uma desproporção. Nos ataques em solo norte-americano, morreram 2.993 pessoas, incluindo os 19 ditos terroristas – e a muitos foi dada a chance de fugir. Essa oportunidade não existiu para as 220 mil pessoas que foram evaporadas em segundos em Hiroshima e Nagasaki – às quais se somaram, com o passar dos anos, milhares de vítimas da radiação atômica.

É o medo de que algo semelhante aconteça em alguma cidade norte-americana que quer proibir o Irã de enriquecer urânio. Somente os Estados Unidos e seus amigos de confiança têm a permissão de efetuar destruições em massa. Qualquer outro, por menor que seja a suspeita, é, como foi visto no Iraque, em 2003, invadido, destruído e expropriado da liberdade de controlar seu bem natural mais valioso – no caso, o petróleo.

O que pensar, diante de tantos ataques à liberdade, à verdade? Que o ideal seria a inexistência de preconceitos, de medos, de ódios – e que os Estados Unidos deixassem de se considerar as maiores vítimas da história. Se existe exagero e intolerância nas idéias de ambas as culturas, a muçulmana e a judaico-cristã, existe também uma desproporção brutal de forças e de reações. Assim como a liberdade que os governos norte-americanos querem apregoar, a paciência e a ignorância do ser humano são bens limitados.

2.7.10

Deus e o Diabo na terra do gol

Nunca entendi direito, em Copa do Mundo, a torcida que o brasileiro faz para os times mais fracos. Comungo a idéia daqueles que gostam de ver o sucesso de seleções sem tradição, como sempre acontece quando uma equipe africana passa para as oitavas de final – mas pela mudança, pela diferença. Não compreendo meus conterrâneos torcendo pela Eslováquia contra a Itália ou pela Suíça contra a Espanha somente para facilitar o caminho para o Brasil mais adiante.

Sem desmerecer uma ou outra seleção, contra quem teria mais valor o Brasil decidir uma Copa? Contra a Suíça ou contra a Espanha? Aqui, no país da vantagem e do jeitinho, quanto mais fácil melhor. Ao chegarmos à África do Sul, desfiamos as dificuldades de jogar contra a Coréia do Norte e a Costa do Marfim como que para ocultar outro fato, bem mais real: não tínhamos condição de passar por uma equipe mais forte, como a Holanda.

Nem bem tinha terminado o jogo contra o famoso time de laranja e, além do técnico Dunga, cuja carta já estava marcada pela TV Globo desde o início da Copa, um Cristo já havia sido escolhido para ser crucificado pelos pecados da Seleção Brasileira, de Dunga e da CBF. Como se o gol contra não bastasse, Felipe Mello ainda recebeu um cartão vermelho. Mas é exagero condená-lo sozinho. Bastou ver o comportamento em campo dos incensados Kaká e Robinho, após o segundo gol holandês, para vermos que não nos acostumamos, ainda, à dificuldade, à derrota.

Nem sempre é possível jogar bonito, e o atual futebol, enlatado pela tecnologia que tudo vê e pela globalização que tudo compra, padronizou esquemas táticos, equilibrou resultados, e cada vez mais a postura psicológica de uma equipe determina o resultado em campo. É fundamental, claro, a segurança de um Júlio César no gol, a força e a integridade de um capitão como Lúcio, a manha e a categoria de um Robinho no ataque. Entretanto, jogadores, equipe técnica, imprensa, torcida – os tão falados 190 milhões de treinadores da Seleção Brasileira, enfim – deviam perceber que um time de futebol não é composto de deuses nem de diabos, mas de homens. Assim, sem sabermos ganhar nem perder, continuaremos empatando.

21.3.10

Poros desobstruídos

É noite em Santa Vitória do Palmar. A Lua, mesmo crescente, permite que se vejam as estrelas, artigo escasso onde moro. Uma frente fria havia entrado na véspera para todos os gaúchos, mas quem conhece aquela tripa de terra de duzentos quilômetros, isolada entre o Atlântico e a Lagoa Mirim, sabe que o vento nos Campos Neutrais é diferente de qualquer outro.

Uma brisa noturna a 16 graus centígrados, talvez menos, em pleno verão. De manga curta e bermuda, e o casaco em casa, a sete horas de ônibus, mas faço pouco caso. Aquele suave e delicioso vento quase frio não era tudo, mas era uma das coisas que eu mais queria, após experimentar o ar parado a 43,3 graus sobre Porto Alegre em 3 de fevereiro. Nem Cuiabá, nem o Rio, nem Timbuctu, no Saara. Naquele dia minha cidade havia sido o ponto mais quente da Terra, segundo a página da Accuweather.

E eis que as temperaturas mais, digamos, civilizadas me devolveram o direito não só à transpiração, mas também à inspiração. Que neurônios podem criar derretidos pelo calor? Era como se a palavra, que costuma usar a boca, a caneta ou os dedos, precisasse de poros desobstruídos para não sucumbir. E ela começa a surgir, devagar, no toque do vento sulino; no afresco de Andrea Pozzo que levei em 2 mil peças para montar em Santa Vitória; no silêncio e no cheiro de campo e de tempo de um hotel fazenda em São Lourenço, com seus móveis seculares e suas paredes de 90 centímetros de espessura; no retrato de Dorian Gray, que tive o prazer de conhecer; nas nuvens escuras que, de súbito, se abrem sobre o mar catarinense para, sabe-se lá, frustrar os meteorologistas ou confirmar que valeu a viagem.

Por isso costumamos juntar às férias o adjetivo merecidas. Para que o frescor do vento, do ar aberto varra o lixo que entope os poros da mente e o dolce far (quasi) niente, de maneira sutil, abra espaço, em nosso âmago, àquilo que realmente importa e que o mundo nos manda deixar em segundo plano.


É noite em Santa Vitória do Palmar. E o rosto sereno da brisa noturna, enquanto tantos dormiam, fez acordar uma palavra perdida.

31.12.09

O botão da alegria

A charge de Amorim publicada hoje no jornal Correio do Povo resume um pensamento que, se costuma me ocorrer em épocas como esta, em 2009 foi mais forte. Precisamos ficar mais felizes em determinados momentos? Já falei sobre o ano novo aqui, mas um enfoque ainda ficou a merecer seus parágrafos.

Conheço gente que possui, parece, um botão liga-desliga de alegria. Sextas-feiras, Natal, Ano Novo, Carnavais (sejam na época em que forem). Muitos vão para não dizer que não estiveram presentes, outros tentam apenas extravasar, exorcizar fantasmas; mas percebe-se em tantos foliões do Sambódromo carioca ou da Sete de Setembro em Salvador, para ficarmos nesses exemplos, uma alegria legítima, cultivada ao longo do ano a despeito de todas as dificuldades e florescida naquele preciso momento, fenômeno esse para mim tão admirável quão inexplicável.

Entretanto, eu não tenho esse botão liga-desliga, o que debito talvez à hereditariedade alemã ou à cultura subtropical de Porto Alegre. Não me alegram a música de Ivete Sangalo ou a voz etílica de Zeca Pagodinho. Prefiro a idéia do Ano Novo plácido, tranquilo, com um violão à beira-mar e meia dúzia de bons amigos esperando os primeiros raios do sol. Antes uma virada que permita pensar que uma preocupada em esquecer.

Meu dezembro não foi fácil, é bem verdade. Doenças em família se somaram a uma insana, ilusória e inócua corrida, no ambiente profissional, para “colocar o trabalho em dia”. Assim como a televisão tenta nos convencer de que temos um botão da alegria, as corporações acham que temos também um botão para trabalhar além dos limites. Nem máquinas fazem isso: imagine-se o que aconteceria a uma lavadora de seis quilos carregada com dez quilos de roupas. Nessas horas, vê-se com mais nitidez a quem é dada verdadeira valorização pelo trabalho feito, e uma sensação de cansaço, inutilidade e desapontamento diminuiu muito a alegria desta época.

Não pensem, contudo, que choro de barriga cheia. Não desconsidero tantos que passaram por coisa bem pior em 2009. Apenas conto a história que reforçou minha desobrigação de me sentir estupidamente feliz nesta virada de ano – e que teve, de certa forma, um endosso do chargista do Correio do Povo. A vida segue, nem tanto ao céu dos fogos de Copacabana, nem tanto ao mar(asmo) do personagem de Amorim. E, com ela, seguem as tentativas, para quem realmente quiser abraçá-las, de criar motivos de amor, paz, sorrisos e realizações em 2010. Talvez seja esse o verdadeiro botão da alegria de cada um.

15.10.09

Recinemizar


Pelo domo de vidro, vê-se o sonho de Vincent Freeman. Num futuro não muito distante, um voo quase corriqueiro rumo a Titã, lua de Saturno. Não para os olhos que o veem, impedidos de nascença, pelo próprio DNA, de ser algo muito mais do que os olhos de um faxineiro. Pois esses, os olhos de Vincent Freeman, veem mais longe e farão o que for necessário para driblar o próprio código genético e encontrar as estrelas.

O domo de vidro, arquitetura de Frank Lloyd Wright, foi emprestado à empresa Gattaca, corporação científica que batizou o filme de estreia do neozelandês Andrew Niccol, em 1997, no qual Ethan Hawke encarnou Vincent Freeman. Milhões de fotogramas dos filmes que já vi, e minha mente se ocupou em lembrar este insistentemente nos últimos dias. Pelo filme, pelas atuações? Pela história, eu sempre fã de distopias? Ou pela ambientação, que valeu uma indicação ao Oscar de Direção de Arte?

Não, o que me levou ao fotograma foi o mesmo foguete que conduzia os astronautas a Titã. E uma palavra: recinemizar. Voltar a viver o lado cinema da vida, e não estou falando apenas da sétima arte, de voltar a ir ao cinema após seis meses sem ver o apagar de luzes. Estou falando de acordar e acreditar no que se sonhou. Não importa por que Vincent quer partir, importa apenas que ele quer partir.

Assim como a faxina que Vincent fazia em Gattaca, meus carimbos nos processos são meu ganha-pão, mas não carimbam passaporte para lugar algum. Eles não dizem nada, não têm emoções como palavras ou imagens, não fazem nada por mim. Ou bem menos que algumas horas frente ao monitor na cada vez mais árdua tarefa cerebral de cavar e remexer ideias, sentimentos e informações e empilhá-los de forma razoável em um texto. Sim, os neurônios também têm músculos, e eles cansam, perdem a força.

Mas, para poder exercitá-los novamente, é preciso que o que faz sentido deixe de fazer sentido. É preciso fazer um barco atravessar uma colina em plena floresta amazônica; é preciso testemunhar um crime pela janela de casa e não poder fazer nada devido a uma perna quebrada; é preciso tomar banho na Fontana di Trevi com Anita Ekberg; é preciso cantar alegremente para Brian que veja a vida por seu lado brilhante, mesmo que se esteja pregado a uma cruz. Bem-vindo ao Clube da Luta!

Por isso, quando ontem, no primeiro encontro de uma oficina de roteiro, soube que assistiria a “Gattaca”, percebi-me novamente a caminho de Titã. O domo não é a separação entre mim e o sonho, e sim um post-it que um arquiteto lendário desenhou em vidro unicamente para não me deixar esquecer o sonho. Os planetas estão de novo em conjunção, é hora de recinemizar.

Em tempo: Vincent Freeman, do sânscrito e do inglês, significa homem livre vencedor.

* * * *
Foto:
http://www.vfxhq.com/1997/gattaca.html

3.10.09

Aquele abraço!

Não posso falar sobre o Rio de Janeiro. Só estive lá por uma semana, em 1985, e, desde então, o que soube foi por parentes e pela televisão. Na cidade que eu não via, Zé Pequeno já estava morto, e me assustava, naquela época, a simples ideia de não se poder abrir o vidro do carro. Se é assim hoje em Porto Alegre, minha visão do Rio atual deve ser inexata. Portanto, não posso falar sobre a sede dos Jogos Olímpicos de 2016.

Não posso ter certeza se o Rio é a cidade maravilhosa onde os personagens endinheirados de Manoel Carlos vivem a vida ou se várias cidades descendo os morros sobre a cidade, disputando (e tomando à bala) o poder escolhido pelo voto. Não sei se o Cristo Redentor abre mesmo os braços para a Guanabara e o mundo, se Ele é o da Sapucaí, maltrapilho e censurado, ou se tem os braços erguidos diante do assaltante, como na charge que vi um dia.

Mas eu sabia que o Comitê Olímpico Internacional escolheria o Rio de Janeiro para os Jogos de daqui a sete anos. O prestígio político do presidente Lula, a estabilidade econômica do Brasil a despeito da (aham) marolinha que começou nos Estados Unidos ano passado, o termômetro que foi o Pan-Americano de 2007, a escolha de nosso país para a Copa do Mundo de 2014 e um continente inteiro que ainda não havia sediado uma Olimpíada foram conjunção mais que suficiente. O Brasil é a bola da vez; que alguém diga se essa pedra já não estava cantada antes da abertura do envelope, ontem, com o nome da capital fluminense.

Eu sabia também que um dia sediaríamos o maior evento do esporte mundial. E me sinto orgulhoso, apesar de o Rio de Janeiro não continuar mais tão lindo como as imagens mostradas pela delegação brasileira ao COI em Copenhague – e apesar de eu não me iludir com promessas de transparência. Hoje em dia, lisura, sozinha, não promove um evento do tamanho de uma Olimpíada, ainda mais no Brasil, a terra do jeitinho. O noticiário fala em investimentos de R$ 25 bilhões para os Jogos Olímpicos, mas sabemos que o iceberg será maior. Não só pela propina (que haverá), mas por causa de cinco séculos de desgovernos, remendos e improvisações.


Trânsito, saúde, segurança, poluição e saneamento básico são desafios que transformaram nossas cidades em ambientes caóticos e necessitam investimentos pesados – não só no Rio e nas sedes da Copa do Mundo. Entretanto, os olhos do mundo estarão voltados para o Brasil em 2014 e 2016, e temos afinal uma oportunidade para que os governos tenham vontade de minimizar esses problemas. Outra razão, portanto, para comemorar. Afora o esporte, pelo natural incentivo que receberá. Patrocinadores, investidores, empreiteiras, redes de televisão, todos quase tão capitalistas quanto o governo Lula, pelo verdadeiro Rio de Dinheiro. E nosso presidente? Ah, para ele já está sendo um abraço. Aquele abraço.

8.8.09

Bobagens, bobagens

Frédi, um amigo meu, me contava outro dia sobre uma conversa que teve com um colega de trabalho, chamado Mauro Arcélio. Perguntava o colega se, pelas leis da Física, não seria possível captar no ar a palavra dita há tempos por alguém. E Frédi, notório especialista em assuntos gerais, achou que não, que as ondas sonoras que produzimos, de tão fracas, se dissipam muito rápido, além de se misturarem com os outros sons. A hipótese então levantada pelo Mauro Arcélio: se tudo o que dizemos se dissipa, se nada fica, então por que nos preocuparmos em só dizer coisas sérias? Por que deixar de rir e de dizer bobagem se nada vai ser escutado dali a poucos segundos?

Lembrou-me aquela máxima, não leve a vida a sério, pois não se leva nada dela. Este Mauro! Pensei, faz sentido o que ele disse. Pelo menos para nós, mortais incapazes de mudar o mundo, o sério é pegar leve, com bom humor, e expressá-lo livremente. Manter a cara séria e amarrada, isso sim é bobagem. Nascemos longe de Kripton ou de uma Mansão Wayne. Que diferença vai fazer para a ordem do universo?

Não é o caso de cidadãos de outras esferas, inalcançáveis, e que sabem que deveriam levar a sério o que fazem. E se aproveitam de que a voz se dissipa na atmosfera, assim como nossa memória para certas bobagens.

A governadora acusada de improbidade administrativa pode deixar que crianças estudem em salas de aula de lata, mas os professores não podem protestar em frente à residência dela. Eles são “torturadores de crianças”, pois os netos da governadora não puderam sair de casa. Crusius credus! Na televisão, um ex-presidente, apoiando outro ex-presidente, manda o senador que disse a verdade digerir a própria língua, duela a quien duela. Dias depois, digladiam-se no mesmo local um cangaceiro de terceira categoria e um coronel de merda. Todos vossas excelências, trabalhando para o povo. É fácil alcançar R$ 2,7 bilhões para 81 senadores gastarem num ano, difícil é encontrarmos uma finalidade para o Conselho de Ética.

Qual o problema, então, de falar bobagem? A pior já fizemos, foi eleger certas pessoas. Vou dizer ao Frédi, se o Mauro Arcélio quiser um dia expressar todas as suas ideias, põe muito blogueiro bom no chinelo.

27.6.09

Heróis

Ontem à tarde, minha filha Luísa, 3 anos, empilhava, uma a uma, minhas revistas Set. Alcanço a ela uma revista, ela pega, olha a capa e põe o exemplar na pilha. Passo a ela um número em que uma foto enorme de Angelina Jolie domina a capa. Luísa aponta para o rosto da atriz e pergunta:

– Mamãe?

Começo a tentar responder, enquanto ela pega a seguinte, trazendo Christopher Reeve na roupa de Superman, e pergunta:

– Papai?

Sem querer, e sem saber quem são Angelina Jolie ou Superman, Luísa me lembrou que para nós, filhos, nossos pais costumam (ou deveriam) ser as pessoas mais poderosas, bonitas e fortes do mundo. Os seus primeiros heróis. E ninguém precisou dizer isso a ela, pois ela nasceu sabendo.

18.1.09

Passagens (março): o segundo passo

O que fiz em termos de cinema após a apresentação de meu primeiro curta-metragem não condisse com o entusiasmo daquele momento. Ao longo de dois meses, fui convidado para co-dirigir outro curta, no qual precisaria comandar ensaios com um elenco bem maior, e considerei fazer direção de produção de um terceiro filme, junto a uma equipe profissional. Que desafios! Essas produções, no entanto, não foram adiante, e o entusiasmo kaputt!, fez água. Meu café, mais que cortado, parecia pequeno.

Agarrei-me então a uma tábua que eu não esperava. Entrei para um grupo de estudos sobre direção de arte, coordenado por Gilka Vargas e Iara Noemi. Minha ignorância sobre o assunto não era de admirar; mesmo no meio cinematográfico, muita gente ainda não reconhece que o diretor de arte não é meramente o responsável pelo cenário. Não, ele comanda uma grande equipe de técnicos (cenógrafos, figurinistas, maquiadores, entre outros), dando coerência artística e estética a todo esse trabalho. É (ou deveria ser) um dos manda-chuvas do set de filmagem, junto com o diretor de fotografia e o diretor propriamente dito.

Nem penso em trabalhar com direção de arte, mas o conhecimento nessa área mudou minha concepção sobre cinema. Assim como o montador, ao decidir os tempos das tomadas, o diretor de arte, no momento em que define ambientes, relações entre espaços e cada objeto que estará em cena, tornou-se para mim também um dos “donos” do filme. E passei a ir ao cinema cuidando coisas diferentes, como distribuição de espaços, texturas predominantes e objetos com significado especial para a história.

Quanto mais sei sobre cinema, maior o abismo entre os enlatados norte-americanos e os filmes ditos “de arte”. Alguns diretores podem ser generosos com o público, como Woody Allen ao explicar a metáfora (genial, diga-se de passagem) da bola de tênis em “Match point”. Mas não obrigatoriamente, e então podemos ver o filme sem entender o que representa, por exemplo, a casa em “Delicatessen” (dos franceses Marc Caro e Jean-Pierre Jeunet) ou o relógio do capitão em “O labirinto do fauno” (do mexicano Guillermo del Toro).


Mas este meu segundo passo no mundo do cinema também teve efeitos práticos. Confirmou a volatilidade de grupos e projetos no universo cinematográfico. Se pouquíssimos sobraram do grupo de estudos inicial, em março, que parecia reunir sozinho todas as funções básicas de um curta, também havia no final do ano outras pessoas, com sangue novo e boas idéias. Recuperei a vontade de escrever e filmar (alô, Paula! Vamos fazer um filme?). E percebi que, embora esteja me naturalizando nesse país chamado cinema, ainda me sinto um estrangeiro – aviso para que eu dê novos passos e siga caminhando por ele.

2.1.09

Passagens

Os segundos não mais se continham na coluna do tempo e o ano velho se fez novo. Da mesma forma, as palavras transbordavam após outro longo silêncio, pedindo que o papel as retivesse, antes que eu as perdesse por esquecimento.

De todas as passagens do ano que findou, algumas ainda marcam a memória, que, aceitando gentilmente o convite que lhe fiz, trouxe a matéria para os próximos textos. Peço desculpas pela antigüidade dos temas – é que considerei ainda relevantes na minha história, pontuando os meses de 2008.


E rogo ao leitor, não me peça por enquanto as regras desse “acordo ortográfico” (sic), tão necessário à nossa cultura quanto um coquetel de aniversário da ABL. Isso nem me passou pela idéia.

9.11.08

Obama e o mundo pós-Bush

Change – We can believe in. Esse o slogan que Barack Obama usou em sua campanha, e que estava em cada púlpito do qual ele discursava. Será o primeiro presidente negro dos Estados Unidos capaz de efetuar essa mudança, que o povo norte-americano (o próprio Obama dizia) e o mundo todo (nós bem sabemos) necessitam?

A idéia de um negro ocupando o Salão Oval da Casa Branca, até a campanha presidencial terminada dia 4 nos Estados Unidos, ainda muito vaga, pertencia ao imaginário da televisão e do cinema. Desde um Sammy Davis Jr. criança em 1933, escassa meia dúzia de atores interpretou o papel, sendo os mais conhecidos os presidentes vividos por Morgan Freeman em “Impacto profundo” e Dennys Haysbert na série “24 horas”.

E então o precedente, improvável para muitos, foi aberto, o que foi comemorado em todo o mundo. No Quênia, país onde nasceu o pai do presidente eleito, a nação parecia festejar o fim de uma guerra ou a queda de um ditador. Tanta alegria pode parecer exagerada: no primeiro discurso após a eleição – e em suas primeiras atividades no gabinete de transição – Obama prometeu medidas imediatas contra a crise econômica mundial, mas sem deixar de ser um presidente capitalista, da democracia, da liberdade e da oportunidade.

A pá de cal deitada sobre a campanha do republicano John McCain foi justamente essa crise econômica, contra a qual um George W. Bush atrapalhado, negligente com as populações pobres dos Estados Unidos e ainda sem conseguir justificar as perdas em vidas e dinheiro em duas guerras na Ásia pouco soube fazer. O presidente republicano foi, sem querer, o maior cabo eleitoral do candidato democrata.

Obama recebe um governo desacreditado em termos sociais, econômicos e ambientais, precisando se recuperar de um retrocesso de oito anos. Foi essa situação que fez o eleitorado norte-americano tornar real uma possibilidade tão remota – e a cor da pele do novo presidente, embora não tenha sido lembrada por ele próprio em seu primeiro discurso, justifica a esperança e a comemoração.


Afinal, a vitória de Obama é a vitória da tolerância sobre o preconceito e do diálogo sobre a imposição, mesmo que o sucesso do novo presidente contra as vicissitudes que sofre a população mundial seja relativo. Nascido no Havaí e tendo vivido na Indonésia, Barack Obama não cresceu imaginando-se o umbigo do planeta e já conviveu com a realidade do Terceiro Mundo.

É razoável esperar dele um posicionamento mais aberto, universal e preocupado com o futuro – com o meio ambiente, com a realidade das outras nações, com o uso da riqueza mais em preservar vidas do que em eliminá-las. Mesmo que muitos outros passos tenham que ser dados, o primeiro Obama parece disposto a dar, e é isso que esperamos também nós, cidadãos de outras nações, do presidente do país mais rico do planeta.

31.10.08

Quando entrar novembro

A poesia de Beto Guedes fixou em palavras uma idéia que já tínhamos – a de que a boa nova espera setembro para andar pelos campos. Pudera, setembro nos dá os oito primeiros dias da primavera. Meu ano imaginário da infância localiza nesse mês ainda casacos e blusões grossos de lã, mas, ao mesmo tempo, os primeiros dias de sol forte proporcionando uma cor diferente, mais intensa, no retorno aos passeios de domingo à tarde.

É estranho, pois, historicamente, setembro é o mês mais chuvoso do ano em Porto Alegre. Mês de chuvas e de ventos – de transição e ainda de espera, bem diferente daquela primavera subitamente acolhedora das histórias infantis. Talvez o setembro mineiro, aquele de Beto Guedes, seja mais ameno e brilhante que o gaúcho. E a culpa pelas lembranças distorcidas quem sabe seja dos tons vivos do filme Kodak que meu pai usava para bater os slides onde reside boa parte de minha memória.

E eu, que neste inverno recorri tantas vezes aos versos de “Sol de primavera”, acreditando em boas novas assim que o mês oito se fizesse nove, permaneci hibernando. Em nenhum mês tenho mais aniversários de amigos que em setembro – inclusive um bom punhado dos mais queridos que fiz na faculdade, quase um Clube da Esquina. Desejar felicidade e alegria por tantos aniversários também me deixou feliz, mas nada perto do que seria ver cumpridas algumas resoluções do mês.

Nada escrevi, tampouco fui ao cinema ou ao teatro, e uma hora de nado parecia não compensar os quinze minutos a pé até o clube. Poucos amigos encontrei, eles me fazem falta, e também neste inverno vi meu grupo de cinema, que comungava objetivos, sucumbir diante de vontades pessoais. Restou amarrar-se, perder tempo ou pensar só em trabalho, que pareciam estar na programação básica que trazemos do útero.

A acomodação era cômoda; a diversidade não dignificava o homem, cristalizado que estava ao fim de um inverno estranhamente morno e úmido, que lhe serviu para dar forças à influenza três vezes e que, nos dias mais frios, deixou-o confinado em plenas férias (férias?) em um apartamento a 11 graus centígrados. A porta da rua só se abria para atividades que utilizassem tão-somente o cerebelo. As demais nunca constavam da agenda, livro onde não cabem a poesia, o improviso e o inusitado, e que foi criado para listar desculpas para faltarmos a ocasiões interessantes.

Qual a boa nova? Onde o sol de primavera, neste setembro intelectualmente cinzento?

Então, bem mais apropriado que Beto Guedes me pareceu Green Day, cantando o esforço em deixar para trás frustrações e lembranças traumáticas em “Wake me up when september ends”. Mas veio outubro, indiscernível de setembro como é o pampa, dos dois lados da fronteira com o Uruguai. Apenas o vento corria mais forte, agora sim parecendo setembro. As horas, tão curtas para as desobrigações, para a vida pura e simples, para inspirar idéias e exalar palavras, apenas adiando projetos.

Até quando? Setembro findou, c’est printemps, novembro chega, e o homem hiberna. Hora de acordar.

27.10.08

Diálogo pós-eleição

– Maria do Rosário, José Fogaça... esta foi a verdadeira eleição Sagrada Família.
– Ué, Sagrada Família a troco?
– Não lembra a Sagrada Família da Bíblia? Jesus, Maria e José...
– Tá certo, tem a Maria e tem o José, mas e o Jesus, cadê?
– Jesus somos nós, que fazemos milagre todo dia e vamos continuar carregando a cruz!